A7021

O sol está se pondo e eu sinto sobre o meu rosto a brisa, levemente quente, me queimar. Escuto o sino tocar, era hora de me recolher. Pego a cesta com as espigas de milho e caminho para o fim do extenso milharal, assim como todos os outros jovens trabalhadores. Coloco a cesta sobre o balcão de recolhimento e pesagem. Sete quilos e cem gramas. Aquela era a minha última cesta do dia,
por pouco não cumpro a minha meta. Entro na fila que se formou em uma das saídas da plantação para fazer a vistoria. Chega a minha vez e elas começam a me revistar; sou liberada, pois não carregava nada comigo.

Caminho até o meu dormitório, onde novamente sou revistada. Ao entrar, todas já estavam presentes. As meninas me olham ansiosas, mas ainda não era a hora, ainda estávamos sendo vigiadas.

Tomo o meu banho e me preparo para dormir; me deito em minha cama e as luzes se apagam.

– Já está na hora? – escuto uma voz infantil e distante dizer.
– Shhh, quando for a hora, ela vai dizer.

Eu sei que elas estão ansiosas. Então, sem demora, pego a minha lanterna, para usos em caso de emergências, e a acendo. Todos os olhares voltaram-se para mim.

– Sim – digo – está na hora.

Todas saem dos respectivos beliches em silêncio e se aproximam de onde estou. Há meninas por toda a parte, de diferentes idades, porém todas jovens. Elas estavam no chão, nas camas, e algumas estavam em pé; todas curiosas para saber qual seria a história da semana, a última história a ser contada por mim. Agora que tenho a atenção de todas, começo:

– Há muito tempo, com o objetivo de facilitar a vida do homem, foi criada a primeira máquina. Todos estavam felizes, pois sabiam que ela seria muito útil. Mas os homens se tornaram muito gananciosos, eles queriam mais inovações. Construíram as máquinas para que elas fizessem de tudo. Porém, as pessoas começaram a se isolar, elas não conversavam mais, estavam presas em um mundo imaginário, um mundo que elas mesmas tinham criado. Elas não precisavam mais trabalhar, eram servidas de dia e de noite. As pessoas deixaram as preocupações de lado. Então, um dia um homem decidiu que a culpa do mau comportamento humano era das máquinas, e ele se revoltou, ele queria destruir todas elas, pensava que assim o problema seria resolvido. As máquinas não gostaram disso, elas sabiam que os humanos eram maus administradores, eles quase haviam destruído o planeta! Então elas decidiram que seria melhor que elas tivessem o controle, elas eram mais fortes, e as pessoas entenderam que elas tinham razão; com elas no comando, não teríamos mais acidentes. Só que as máquinas perceberam que elas estavam muito acima de nós, então elas passaram a recusar-se a trabalhar, o homem é quem deveria ser o servo. Foi assim que nós começamos a trabalhar para elas, e, em troca, ganhamos um nome novo, comida e moradia, assim como é hoje. Mas antes nós recebíamos uma medicação que nos impedia de sentir qualquer coisa: raiva, ódio… mas era muito difícil de fabricar…

– A C5097 disse que esse remédio ajudava a gente a não ficar com raiva
das máquinas.
– Não é mentira, mas o real objetivo era que nós não ficássemos tristes, só que a substância que eles usavam para fazer o remédio se esgotou. Com isso, nós tivemos que nos dividir, as meninas dos meninos, assim como os que trabalham com a produção de comida e aqueles que trabalham nas minas.
– Você vai para as minas? – aquela pergunta me paralisou.
– Sim, mas não se preocupem, tudo vai ficar bem.
– Nós não queremos que você vá para lá.
– Eu também não quero deixar vocês, mas vocês sabem como são as regras. Depois de amanhã eu completo dezoito anos, e então eu terei que mudar de setor.
– Mas quem vai contar as histórias?
– Outra pessoa pode contar – um barulho chama a nossa atenção. – Acho que já está tarde, amanhã nós temos que acordar cedo. Boa noite, meninas; e tenham bons sonhos.

Rapidamente eu desligo a minha lanterna e me deito, ouço algumas vozes reclamarem pela falta de continuação da história, mas eu não poderia continuar. Em um dia eu seria transferida para as minas, um lugar que eu não conhecia e que me disseram ser apavorante, no qual várias pessoas morriam asfixiadas ou soterradas. Além disso, eu teria que deixar todas ali, e isso partia o meu coração. Várias pessoas tinham nos deixado para ir para as minas, a falta que sentíamos era terrível, mas nada comparado a quando você é a pessoa a ter que deixar os outros.

Por pouco eu não consigo dormir. Quando acordo, com o barulho da sirene, o dia é como todos os outros. As máquinas fazem a contagem de quantas pessoas havia no dormitório, para se certificarem de que ninguém tinha morrido ou fugido, o que era comum naquelas circunstâncias. Saio do dormitório e vou em direção ao refeitório, onde recebo o meu café da manhã. Logo após, vou para a plantação de milho, pego uma cesta e dirijo-me à fileira designada.

Como em todos os outros dias, sinto o sol me queimar, porém o vento me sufoca, o dia está menos úmido do que os outros, o que dificulta a respiração. A sirene toca, era hora da primeira refeição. Cada espiga de milho é como uma contagem regressiva, e, para a minha tristeza, o tempo passou mais rápido do que eu esperava. Por mais que eu esteja ansiosa para o fim do dia, pois então encontraria o número A8329, temo o futuro próximo.

Ouço a terceira sirene tocar e eu corro para fazer a pesagem da cesta e ir ao encontro do A8329. Vamos nos encontrar no campo, e eu não quero me atrasar. Quando chego ao local, ofegante pela corrida, ele já está lá.

– Achei que você não viria – ele diz.
– Você sabe que eu sempre venho – eu digo, e ele sorri.

Eu sento-me ao seu lado, em direção aos alojamentos e às enormes plantações. Atrás de nós, não havia nada além de uma montanha sem vida. Aquele era o nosso lugar, em que podíamos olhar o pôr do sol, a única coisa digna de ser admirada. Temos quarenta minutos até que os portões dos dormitórios se fechem. Aqueles que ficavam do lado de fora sumiam do mapa como se nunca tivessem existido.

– Como estão as coisas? – ele pergunta.
– Eu não sei. Bem, eu acho.
– Está com medo?
– Um pouco.

O A8329 era apenas um mês e três dias mais novo. Nós nos conhecemos quando éramos crianças, quando estudávamos sobre agricultura; foi quando descobrimos esse lugar que se tornou o nosso refúgio. Sempre nos encontrávamos aqui.

– Qual foi a história que você contou?
– Hmmm, um pouco sobre a humanidade. Mais sobre o porquê de nós vivermos assim.
– Contou a história verdadeira ou a sua versão?
– A minha versão é melhor, você sabe disso.
– Elas precisam saber a verdade, você não deveria esconder isso.
– Não posso, elas são muito novas e nós sabemos que não tem como escapar desse sistema. Estamos condenados a viver assim. Contar que mais da metade da população foi exterminada por uma coisa que nós criamos só as deixaria assustadas e com medo.
– Eu não acredito nisso – ele se vira para mim. – Elas precisam saber, por que assim, talvez, nós conseguíssemos fugir disso. Eu pensei sobre como a forma que vivemos é injusta e eu não quero mais viver assim e você também não deveria querer.
– E o que nós vamos fazer?
– Nós deveríamos fugir, agora – ele olha para trás. – Nós não sabemos o que pode existir lá. Talvez tudo o que nos contaram seja mentira, talvez em algum lugar distante daqui exista algo. Já faz tempo que a natureza foi destruída, talvez exista alguma coisa que se reconstruiu.
– Nós não podemos fazer isso, você sabe, não tem como se esconder, seríamos achados facilmente e depois mortos. Talvez exista algo, mas a chance de não existir é maior. E o que vai acontecer? Vamos morrer no meio do deserto?
– Vamos morrer aqui mesmo, qual a diferença? Pelo menos teríamos tentado.
– Não podemos abandonar os outros, tem que haver outro modo.
– Que modo?
– Eu não sei – confesso.
Estamos em silêncio. As palavras dele tinham uma forte influência sobre mim, eu sabia que ele tinha razão, mas não poderia nos comprometer daquela forma.
– Eu trouxe um presente para você, de despedida.
– O que? – sorrio.
Ele coloca a mão dento do bolso e retira uma corda feita com palha trançada, e diz:
– Enquanto eu estava trabalhando, eu encontrei um pedaço de algo que eu não sei o nome, mas tinha a imagem de uma mulher com isto nos braços, lá dizia que o nome era pulseira. Não era exatamente isso que eu vi, e eu sei que pode não parecer um presente, mas eu fiz isso por que eu não quero que você se esqueça de mim.
– Você sabe que eu nunca me esqueceria de você.
Ele pega em meu pulso, esticando o meu braço e amarrando a corda de palha trançada. Ela se transforma em algo que eu nunca tinha visto ou pensado, mas era encantador.
– Obrigada pelo presente, eu adorei, ela é linda – eu agradeço.
– Você sabe que eu te amo, não sabe? – Ele diz de repente.
Aquela pergunta me deixa desconfortável, eu sabia que sentia a mesma coisa por ele, mas, naquelas circunstâncias, envolvimentos amorosos eram fatais. Nós provavelmente não nos veríamos de novo, eu não poderia deixar que ele sofresse daquela forma. E, por mais que quisesse, algo me impedia de fugir.
– Você sabe que isso não funcionaria – ele me olha desapontado. – Acho melhor nós irmos, senão os portões irão se fechar – eu me levanto e o deixo sentado sobre a grama seca.

Sem olhar para trás, volto para o meu dormitório e sou revistada. Evitando as meninas vou ao banheiro, tomo o meu banho, me arrumo e me deito, sem conseguir evitar os olhares piedosos e tristes que todas me lançam. Logo pela manhã, durante a primeira contagem do dia, as máquinas me levariam para as minas, eu já tinha visto isso acontecer milhares de vezes, sabia como proceder e agora era a minha vez.
Acordo, eu estou em um quarto, completamente branco e vazio. Eu me levanto e percebo que as minhas roupas tinham sido trocadas por uma calça e uma blusa também brancas.

Por sorte, a pulseira ganhada ainda estava em meu pulso. Uma porta que eu não havia enxergado se abre e um homem entra, ele também usa roupas brancas.

– Senhorita A7021, ou como nós a chamamos: Projeto 103. Vejo que já despertou. Você passou bem a noite?
– Sim. Onde eu estou? – Respondo.
– Que bom – ele sorri forçado. – Essa sala não é muito aconchegante, eu sei, e também vejo que a senhorita não reconhece um hospital, certo?
– Na verdade, não. Eu nunca fico doente.
– Sim, eu sei. Por favor, calce os seus sapatos e me acompanhe.

Sigo o provável médico, e sou levada por um corredor vazio. Tudo era completamente branco, o lugar era mais apavorante do que eu imaginava. Já tinha ouvido relatos de muitas pessoas que ficavam doentes ou se machucavam que iam para o hospital, algumas delas voltavam, outras não. Ninguém sabia ao certo o que acontecia aqui, pois todos que estiveram nesse lugar estavam muito drogados para terem uma lembrança nítida dos acontecimentos. Entramos em uma sala, onde havia milhares de cápsulas gigantes e enfileiradas, uma atrás da outra, de forma bem organizada.
– O que são essas coisas? – pergunto.
– Seus irmãos – o homem responde, sem se virar e sem alterar os seus passos.
Como aquelas coisas poderiam ser meus irmãos? O medo me apavorava cada vez mais, mas não tinha como escapar, eu não conhecia o lugar e não saberia como sair dali. De repente, o homem para e abre mais uma porta invisível, porém ele permanece do lado de fora e vira-se para mim.
– Por favor, entre.
Eu continuo a caminhar, hesitante. Tento encontrar uma saída, mas em vão. Quando me vejo, já estou dentro da sala e a porta se fecha. Ela é bem arejada e iluminada, a ponto de eu não conseguir enxergar, porém nela há algo de desconfortável, e sombrio.
– Impressionada?
O brilho das luzes é reduzido, agora consigo enxergar algo, e diante de mim identifico uma espécie de máquina, era ela quem falava. Dou um passo para trás, temo o que pode acontecer. Ela era mais sofisticada, diferente dos outros que eu estava acostumada a ver nas lavouras.
– Não fique com medo, eu não vou lhe fazer nenhum mal.
– Quem é você? E por que eu estou aqui?
– Era exatamente isso que eu esperava que você me perguntasse. Eu sou COP01, Comando Operacional Número Um. E estou aqui para te parabenizar pelo seu desempenho, nós estamos significativamente gratos pela sua contribuição. Por favor, sente-se.
Uma cadeira surge atrás de mim. Eu perco controle sobre o meu corpo e me sento sobre ela.
– Suas memórias nos ajudaram muito para o aprimoramento do nosso novo projeto – continua.
– Que projeto?
– Entendo a sua dúvida – faz uma pausa curta. – Quando as pílulas de controle hormonal foram extintas, precisamos formular outro método eficaz de controle sobre os humanos. Então criamos os Projetos que são robôs humanos, como gostamos de chamar. Eles se infiltram no cotidiano das pessoas e as convencem de que a revolta contra nós é algo infrutífero, além, é claro, de nos ajudar na coleta de dados para os estudos sobre o comportamento humano.
Sinto algo fincar a minha nuca e grito por causa da dor estrondosa que sinto, ao mesmo tempo em que os meus braços são enlaçados por cordas de aço.
– Desculpe o inconveniente. É justamente isso que estamos tentando melhorar. Esses Projetos estão em fase de teste e você foi o mais bem sucedido.
Porém, percebemos que você se tornou mais humana do que o esperado, e isso é perigoso para nós. De acordo com a nossa base de dados, você chegou a se apaixonar por um humano, certo? O número A8329.
Nesse momento, de forma involuntária, todas as lembranças começaram a passar pela minha mente, lágrimas se formaram em meus olhos, logo elas começaram a escorrer sobre o meu rosto, pois, além da dor que sentia, as memórias das pessoas mais amadas por mim eram apagadas, uma a uma.
– Não chore, você é apenas um robô. O individuo A7021 morreu há um ano colhendo espigas de milho. A nossa sorte foi que nós a encontramos antes de qualquer humano e conseguimos restaurar a sua memória e implantá-la em você.
Tudo o que você sente é puramente um erro de programação. Eu prometo que seus irmãos não terão esse defeito, graças a sua ajuda. Não se desespere, você não irá morrer.
Ela se retira da sala e me deixa sozinha, olhando para a parede branca.
Em minha mente, eu revia todas as minhas memórias, das mais antigas às mais recentes. Todos os dias monótonos na lavoura, o sol me queimar, todas as histórias contadas no dormitório, cada segundo já vivido por mim, até que a imagem do A8329 surge. Era a memória do dia anterior, e, como se eu revivesse tudo, eu recebo um segundo presente, uma segunda declaração e um primeiro adeus. Vejo o teto do meu dormitório, aquela era a minha última memória antes de ir para o hospital, e, como em um sonho, eu adormeço.
Quando acordo, estou em um quarto, um dormitório semelhante ao antigo. Eu me levanto, a sirene já tinha tocado, estava pronta para trabalhar nas minas. As coisas pareciam as mesmas. A contagem é feita, eu me arrumo para o café da manhã, porém eu percebo algo de estranho em meu pulso, era uma espécie de corda feita com uma palha trançada. Eu não sabia ao certo de onde aquilo tinha surgido, mas me encantava e me trazia um sentimento diferente, de familiaridade. Olho em volta, mas não reconheço os rostos. Decido ficar com o estranho objeto. Termino de me arrumar e vou ao trabalho.





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