Asas Remotas

– Do que você mais sente falta de como as coisas eram antes?
– A entrevistadora perguntou.
– Asinhas de frango. – Foi a minha resposta.
– Como assim? – Ela disse, confusa.
– Eu sinto falta de comer um monte de asinhas de frango em uma refeição, fritas ou feitas na churrasqueira. Sabe, hoje só temos frangos criados soltos, felizes em nossos quintais. Por isso eu entendo como é difícil imaginar um tempo em que as pessoas devoravam dúzias de asinhas de uma vez só, já que ninguém jamais mataria vários frangos só para fazer isso. Mas na minha juventude, antes de tudo acontecer, era muito comum.
– Eu já soube de muitas histórias sobre a relação estranha que as pessoas tinham com a comida antes da Grande Exaustão. Tipo a de que vocês mudavam os padrões genéticos das plantas em um laboratório para que elas crescessem mais depressa e mais resistentes aos insetos, o que já é muito louco. Mas isso que a senhora acabou de me contar é algo que eu nunca tinha ouvido antes.
– Todo mundo adorava. Nós ligávamos para um número e eles entregavam um balde de papelão cheio de asinhas de frango fritas na nossa casa.
– E o que é papelão?
– Bem, um tipo de papel.
– Papel, aquele que era feito de árvores?
– Sim.
– Que interessante. Não é nenhuma surpresa que tudo isso tenha ficado no passado, não é? Pense só! Cortar árvores para fazer recipientes para inúmeras asinhas de frango vindas de animais criados em cativeiro só para alimentar uma insustentável população de sete bilhões de pessoas que gostavam de comer muito! Insano. – Ela riu.
– É, não é nenhuma surpresa. – Eu estava com essa vontade de comer asinhas de frango havia meses. Ter um desejo alimentar não é uma coisa tão ruim quando há uma chance de que ele possa ser realizado. Não é o meu caso. Isso me faz pensar nas mulheres grávidas que tiveram tais desejos depois da Grande Exaustão. Como elas devem ter sofrido. De todo jeito, aposto que nenhuma delas teve coragem de revelar seu anseio, que seria considerado algo frívolo, já que o mundo estava completamente devastado. Para a nossa sorte, todos os sobreviventes agora estão velhos demais para procriar. Eu, por exemplo, nunca tive a chance de carregar um bebê na minha barriga e estou satisfeita com isso. Houve muito encorajamento para repovoar o planeta, mas eu consegui deixar isso para os outros.

O programa de rádio se chamava Memórias Estranhas e toda semana ele era apresentado em uma cidade diferente dentre as que ficavam próximas dali, mas quase inacessíveis por terra. Eles entrevistavam uma pessoa idosa, como eu, que falava sobre como as coisas eram antes. Não foi a minha primeira vez no programa. Tinham me chamado muitas vezes, já que as pessoas que ainda possuíam memórias daquele tempo remoto para dividir eram poucas agora. É engraçado que, mesmo antes do meu nascimento, diziam que o rádio iria desaparecer. Erraram feio. Estamos no ano 2095 e ele é a principal fonte de entretenimento e informação. O Memórias Estranhas até mesmo fez uma série sobre a internet e como ela foi muito importante na vida de todos, mesmo sendo algo perigoso e ilusório.

– Semana que vem o nosso programa será sobre uma coisa da qual as pessoas de antes eram totalmente dependentes. Sim, você acertou se disse telefones celulares! Nunca na história da humanidade houve um objeto tão indispensável. As pessoas enlouqueciam se ficassem algumas horas longe desses dispositivos. É muito esquisito! Mas era assim. Vamos trazer um pessoal fascinante para nos contar sobre isso. Fiquem ligados!”

Eu saí da estação de rádio me sentindo meio zonza. Não me incomodava falar sobre o passado; eu até gostava quando alguém perguntava sobre como era. Mas a entrevista me fez pensar em como tudo foi inevitável. Não dava para continuarmos vivendo daquela maneira. Os cientistas trabalhavam horas sem fim em seus laboratórios para elaborar os mais poderosos agrotóxicos quando éramos nós que estávamos consumindo o planeta. E, mesmo sabendo disso, eu ainda daria um rim por um prato de asinhas de frango.

Caminhei até em casa, claro. Dava para fazer tudo a pé agora. As queimadas da Grande Exaustão deixaram apenas pequenos oásis de terra intocada aqui e ali em todo o mundo. As partes destruídas ainda eram terrenos perigosos e tóxicos, o que tornava viagens quase inviáveis. A maioria das pessoas passava a vida inteira quieta em seus perímetros, ouvindo sobre os acontecimentos do mundo através do rádio. Eu gostava dessa vida tranquila e sem estresse, mas conheci pessoas que teriam detestado isso, que chamariam de lugar entediante. Todas elas estão mortas.

Ao passar pela porta, eu logo ouvi os grilos. Era o telefone. Não sei quem teve a ideia de transformar o toque ring-ring de antes em sons de grilos. Obviamente era uma forma de honrar os animaizinhos que deram início a tudo. Mas sempre que eu ouvia aquilo, meu coração acelerava, e a lembrança do céu sendo preenchido por uma nuvem gigante de insetos que depois caíram mortos no chão me assombrava. Os ambientalistas falaram muito antes sobre os riscos de um possível desaparecimento dos grilos, mas ninguém parou de usar o veneno que eles diziam estar prejudicando-os. Até que um dia os grilos desapareceram. Não estavam em lugar nenhum. Houve uma avalanche de “Eu avisei” da mídia em todo lugar. Mas não aconteceu nada. Por cerca de dois meses, tudo ficou igual, exceto a existência dos grilos. Até o dia em que trilhões deles voaram juntos em direção a um enorme aglomerado no céu, ficaram lá por um tempo, e, depois, caíram sem vida. Havia pilhas e pilhas deles no chão. Eles tinham ficado escondidos em profundos buracos na terra, reproduzindo-se freneticamente até que não houve mais espaço. Isso aconteceu em todo o planeta. Quando não cabiam mais nos buracos, saíram e tudo se desenrolou.

Centenas de milhares de pessoas morreram soterradas embaixo deles. Mas isso não foi nada comparado com o que aconteceu depois. A morte dos grilos causou um grande desequilíbrio ambiental. Não sou climatologista, então não sei bem qual foi o processo, mas as temperaturas aumentaram muito, e raios cortavam os céus, apesar de não haver nuvens. As queimadas começaram e não choveu por dois anos. Três quartos da população mundial morreu. Eu sobrevivi. E agora parece estar tudo bem de novo.

Atendi ao telefone. Era uma amiga tão antiga quanto eu. Ela morava onde um dia tinha sido a França e me ligava toda semana. Nós nos vimos ao vivo apenas uma vez quando tínhamos 13 anos e eu fui ao país dela para uma competição internacional de matemática. Fui escolhida entre muitos outros adolescentes de escolas públicas para representar o meu país. Nenhuma de nós venceu a
competição, mas nos divertimos muito fumando e rindo escondidas atrás dos muros da escola dela. As pessoas agora não conhecem mais o conceito de fumar. A ideia de levar aos pulmões qualquer outra coisa que não seja ar é muito estranha a todos. E talvez seja justificável, já que durante as queimadas nós respirávamos muita fumaça indesejada. Até hoje, tanto eu como minha amiga temos pulmões fortíssimos. Os países também se tornaram algo do passado. Só temos pequenas áreas de terreno fértil onde muita gente vive e morre sem ir a outro lugar. Além
disso, saber mais do que a sua língua nativa é muito raro. Eu não falo mais francês, mas ela conseguiu manter o seu português, graças a mim.

Ela me contou que nascera mais um de seus bisnetos. Eu fingi que isso me interessava, porque eu gostava de conversar com ela. As pessoas do meu perímetro eram muito comunicativas e era só você sair de casa para que encontrasse alguém para puxar conversa. Mas eu gostava mesmo era de saber em primeira mão como as coisas estavam do outro lado do oceano intransponível. Até porque, os telefonemas para qualquer lugar do mundo eram gratuitos.

Após descrever a novidade do recém-chegado bebê, ela me falou que teve um sonho e que mal podia esperar para me contá-lo. Eu era a única que entenderia.

– Eu sonhei que tinha trinta e poucos anos. Era solteira e sem filhos. Meu trabalho era pegar um avião diferente toda semana para visitar outro país, onde eu experimentava comidas típicas e gravava vídeos sobre isso para um programa de televisão. Você se lembra desses programas de TV? – ela disse com seu sotaque francês.
– Acho que lembro. Eles iam a restaurantes, não é?
– Sim. Eu adorava ir a restaurantes com meus pais.
– Nós quase nunca íamos. Mas meus pais cozinhavam muito mal, então a gente sempre pedia muito delivery em casa.
– Uma das coisas que aconteceu no sonho foi que eu fui ao seu país. Nós nos encontramos e comemos churrasco de asinhas de frango. Comemos muitas com as mãos e ficamos com tudo engordurado. Depois nos limpamos com guardanapos de papel. Lembra dos guardanapos de papel? Não havia possibilidade de que ela tivesse me ouvido falar no rádio. O sinal não era transmitido a outro continente. Eu não falei sobre a coincidência porque pensei que ela não acreditaria. Era inusitado demais.
– Que estranho isso. – eu disse.
– Talvez eu esteja próxima de morrer, por isso estou tendo tantas lembranças vivas do passado.
– É, já ouvi falar que isso acontece com a idade. A verdade é que nossa hora está quase chegando.
– Já passamos por coisas demais.
– Verdade.
– Vou molhar as minhas flores agora. A gente se fala semana que vem.
– Tá certo. Parabéns pelo novo membro da família. Tchau.
Eu fiz chá e fui para o quintal sentar em um banco. De lá, via a minha amoreira, que eu plantara muitos anos antes e agora estava alta e com troncos grossos, seus galhos fazendo muita sombra em todo o terreno. As cenouras sob a terra pareciam estar quase prontas para colher e algumas galinhas batiam as suas insossas asas enquanto vasculhavam o chão atrás de minhocas. Eu pensei ter
ouvido grilos e entrei. Não era o telefone. Fui deitar um pouco.





Outros Artigos desta Edição

Anterior Próxima