Nove amanhãs para entender o hoje

A Nove Amanhãs nasceu de um oportuno encontro na sala de aula. Durante o curso Além das fronteiras da ficção científica, oferecido pela professora doutora Valéria Sabrina Pereira dentro do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras da UFMG, a construção histórica da ficção científica, suas principais obras, as constantes e mal-sucedidas tentativas de definição e as características peculiares do campo editorial existente em torno da ficção científica foram debatidas pela turma, composta por Camila Lanhoso, Cochise César, Flávia Denise de Magalhães, Luciano M. Duarte Júnior e Maria Silvia Duarte.

Ficção científica é difícil de se conceituar por vários motivos. É chamada de “literatura de gênero”, sendo assim incluída no mesmo grupo de faroeste, policial e mistério. Porém, não tem as características típicas de “literatura de gênero” uma vez que não há uma estrutura que sempre se repete. Pelo contrário, uma história de ficção científica pode ser aventura, faroeste (espacial), romance, terror, utopia ou distopia, entre outros. Como definir o que é e o que não é a ficção científica? A história deve ter avanços tecnológicos? Se a resposta para essa pergunta for “sim”, todo livro que menciona o uso do computador ou do celular deveria ser considerado ficção científica. “Não!” – o leitor poderia dizer – “Tem que ser ficção científica, com coisas que ainda não existem no momento da publicação do livro”. A colocação seria pertinente, mas, ainda assim, como seria possível traçar o limite entre o que já existe e o que não existe numa época de acelerados avanços da ciência? Temos inteligência artificial, próteses robóticas, robôs que realizam tarefas domésticas e nos preparamos para uma empreitada espacial que inclui a chegada do homem em Marte. Esses temas passam a ser proibidos na ficção científica?

A discussão não acaba aí. Há a questão da relevância da ficção científica na trama. O ganhador do prêmio Nobel de Literatura 2017, Kazuo Ishiguro, se viu no centro de um debate similar ao esboçado acima na época da publicação do romance Não me abandone jamais. Os protagonistas morrem ainda jovens e têm vidas marcadas pelo fato de que são clones, criados para terem seus órgãos retirados – mas, ainda assim, humanos. Variações da palavra “clonagem”, no entanto, são citada duas vezes em todo o livro e não há qualquer explicação sobre o método usado. Assim, fica a pergunta: Se o foco do livro são os sentimentos humanos e as relações entre os protagonistas, a mera citação da palavra “clone” é suficiente para categorizar o livro como ficção científica?

Com o desenvolvimento do curso, rapidamente ficou claro que a questão de conceituar o que é, exatamente, ficção científica é o equivalente a entrar num buraco negro: a cada centímetro que nos aproximávamos de um suposto conceito, mais atraídos ficávamos por ele e menos luz havia para enxergarmos. Ao fim do curso, o conceito de ficção científica segue tão misterioso quanto o interior de um buraco negro. No entanto, nem toda investigação precisa ser teórica.

Procurando ampliar nossa compreensão do que é ficção científica, começamos o processo de criação desta revista. Para abrir a chamada de textos, precisávamos resolver a questão dos nossos critérios de seleção, que precisavam incluir alguma definição do que é a ficção científica por mais difícil que fosse a tarefa. Encontramos algumas soluções – ao menos temporárias – para possibilitar uma seleção que ao menos pretendesse ser transparente e justa. Assim, incluímos no chamado, citado abaixo, uma explicação, por mais que insatisfatória, do que consideraríamos ficção científica em nossa avaliação:

Segundo Adam Roberts, ainda que muitos de nós possamos facilmente distinguir uma obra de ficção científica daquilo que ela não é, trata-se de um gênero de difícil definição. “Qualquer livraria terá uma seção dedicada à ficção científica: prateleiras com volumes de cores brilhantes, com capas ilustradas com pinturas fotorrealistas de complexas naves espaciais, ou de homens e mulheres em cidades futuristas ou cenários alienígenas” (ROBERTS, 2000, p. 1). Para o crítico, então, a ficção científica parece englobar uma categoria de textos que reproduz um determinado discurso, no caso, o científico, e que também explora as múltiplas possibilidades da ciência, sendo que muitas das tecnologias descritas pelos autores do gênero não existem nem podem existir no mundo real. É o caso do romance “A máquina do tempo” (1895), de H. G. Wells, no qual o personagem é capaz de viajar ao século LXXX, e de muitos romances que descrevem viagens que ocorrem na velocidade da luz, possibilidade que a ciência atual nega. Nesse sentido, a ficção científica não necessariamente reproduz o discurso científico, mas se utiliza do método científico para criar narrativas em que elementos como naves espaciais, invasões alienígenas, viagens no tempo, utopias ou distopias futurísticas, história alternativas e robôs podem ser  combinados.

Querendo ampliar a gama de histórias que poderiam ser inscritas, incluímos também a possibilidade da história ser enquadrada na ficção especulativa:

Num processo constante de globalização, em que tradições e formas de fazer são rompidas a cada lançamento tecnológico, a ficção especulativa pode ser compreendida como uma reação humana, que usa a imaginação para vislumbrar futuros possíveis – amanhãs possíveis. Segundo Marek Oziewicz, que escreve o verbete da ficção especulativa no Oxford Research Encyclopedia, a “ficção especulativa em seu entendimento mais recente é uma super categoria difusa que abriga todos os gêneros não miméticos – aqueles que, de uma maneira ou de outra, se afastam da imitação da realidade de consenso – da fantasia, ficção científica e horror a seus derivados, híbridos e gêneros cognatos, incluindo ficção gótica, distopia, zumbi, vampiro e pósapocalíptico, histórias de fantasmas, ficção estranha, contos de super-heróis, história alternativa, steampunk, slipstream, realismo mágico, contos de fadas recontados ou fraturados e muito mais”.

A segunda solução foi incluir em nosso processo de seleção o conceito de novum, desenvolvido por Darko Suvin:

O acadêmico Darko Suvin, em sua obra “Metamorphoses of Science Fiction: On the Poetics and History of a Literary Genre”, escrita em 1979, considera a Ficção Científica como gênero literário. Na tentativa de estabelecer parâmetros e delimitar o formato desse gênero, o autor criou o conceito novum. Extraído do latim, o termo significa “coisa nova”, isto é, a construção ficcional de um mundo diferente do autor no momento em que ele escreve. A narrativa literária apresenta artefatos ou objetos inteiramente novos e distintos, causando um estranhamento, no sentido de o leitor se distanciar do que é familiar e se aproximar do que é estranho. De modo geral, novum significa a ficcionalização das possibilidades científicas no contexto em que o autor está inserido, devendo considerar o impacto do novum na cultura e na sociedade. É a partir da força desse impacto que faremos a avaliação.

A esses critérios incluímos um terceiro, para que pudéssemos avaliar também a qualidade da escrita:

A “qualidade” da escrita das obras analisadas será avaliada a partir dos critérios de ortografia, pontuação, coerência textual e discursiva, inovação da linguagem (caso se aplique) e adequação ao gênero proposto (conto). Dito isso, é de inteira responsabilidade dos(as) respectivos(as) autores(as) a revisão ortográfica e gramatical do texto a ser apresentado, assim como o cumprimento dos critérios acima listados.

A ficção científica se debruça sobre o amanhã, sobre possibilidades, prováveis ou não – não importa; desde que sejam, de algum modo, possíveis. Isso não é o mesmo que ser um oráculo. Quem explora possibilidades possíveis eventualmente acerta, mas também erra muitas vezes. Inclusive, bolas de cristal, tarô e astrologia não são muito bem-vindos. A escolha de nove amanhãs para esta edição não se preocupou se cada um desses futuros podia se materializar, mas se esses amanhãs dizem algo importante sobre hoje. A “relevância do novum” como critério vai no sentido da definição de Darko Suvin de que a ficção científica se relaciona com nosso mundo e fala sobre ele. Ao se diferenciar através de um novum, a história cria um contraste que permite que olhemos para nós mesmos com novos olhos.

Nesse sentido, é importante que, ao observar os nove amanhãs reunidos aqui, nos perguntemos o que eles dizem de nosso hoje. São visões otimistas e idílicas, carregadas de esperança de um mundo melhor? Visões pessimistas e apocalípticas, carregadas de terror por nosso futuro? Qual é o papel da ciência neste futuro? Os robôs vão nos salvar ou nos substituir? É ferramenta de nossa salvação ou destruição? Ambos, em uma ambivalência entre apocalipse e pós-apocalipse?

Aliás, o que o perfil dos autores revela sobre essas especulações de amanhãs? A ficção científica continua sendo reduto de homens, brancos com curso superior? São apenas as suas visões que encontram espaço nas páginas da revista?

Em parte sim, e ainda, já que este é um problema velho do gênero. Mas também fica claro que o processo de seleção aprofunda a masculinização e embranquecimento da revista. Quase 30% das inscrições foram de mulheres, mas elas são apenas 22% dos selecionados. Mais de 30% dos inscritos foram de não brancos, mas estes são apenas 22% dos selecionados. Uma seleção impessoal, como a que foi feita, pode também ser lida como injusta, uma vez que parece reproduzir os mecanismos de exclusão da diversidade em nossa sociedade. No caminho inverso, 23% dos inscritos
são autores inéditos, mas dentre os selecionados aumenta para 33%. Curiosamente, os dois autores não brancos que passaram pelo processo de seleção estão entre os três que nunca foram publicados. No entanto, a característica que nosso processo de seleção mais acentuou foi outra: o bairrismo. 46% dos inscritos são da Região Metropolitana de Belo Horizonte, RMBH. Algo esperado para uma revista discente de uma universidade em Belo Horizonte e com poucos recursos para divulgação. Mas entre os selecionados a região salta para 77%.

Então, aviso aos leitores, os amanhãs aqui são essencialmente da capital de Minas Gerais, ainda eminentemente masculinos e brancos, só com dois autores em cada uma destas demografias que escapam ao padrão. Curiosamente, e a matemática é engraçada, isto nos leva a cinco dos nove autores nas categorias minoritárias, ou 55% de “diversidade”, o que poderíamos usar para justificar um discurso triunfante ou dizer que não é preciso repensar um futuro edital. Mas só se fosse a má-fé disfarçada de apreço à matemática que nos movesse.

Ainda assim, analisando o conteúdo selecionado, vemos que há tentativas de representatividade. Sem a intenção de fazer uma análise exaustiva sobre tema, observamos que a maioria dos casais é homossexual. Além disso, a questão da opressão de povos minoritários pelos poderosos é tema recorrente neste conjunto de histórias de ficção científica.

Antes de seguirmos para a leitura dos textos, aproveitamos o momento para explicitar nossa avaliação de cada um dos selecionados.

No conto “A arca”, de Augusto Franco, a história se passa em um futuro próximo na cidade de Belo Horizonte, que se encontra em submersão devido ao aumento do nível do mar. A narrativa é sobre um experimento científico em um ambiente de crise climática, ocasionada pela manipulação de uma bactéria capaz de consumir derivados de petróleo. A obra mistura elementos da ficção especulativa e da distopia. O que torna a história mais interessante ainda é o pano de fundo paradoxal em que a personagem se encontra. De um lado, a cidade dominada pelo fundamentalismo neopentecostal e, de outro, a luta pela sobrevivência do personagem, que constrói um barco que ele chama de “arca”, em alusão à narrativa bíblica “Gênesis” sobre o dilúvio de 40 dias vivido por Noé.

Ewerton Martins Ribeiro inicia o conto “Dias secos” com uma citação de Confúcio sobre a virtude que descreve o comportamento do protagonista anônimo durante os dias de um apocalipse em que a água desapareceu. O cenário apocalíptico é um novum comum da ficção científica, apesar de a falta de explicações sobre sua causa talvez irrite o leitor – a ciência usada não é das físicas ou naturais, que poderiam explicar o fenômeno. O protagonista é capaz de analisar friamente sua realidade e reduzir vidas a oportunidades de crescimento, em um pensamento utilitarista comum na Administração e Economia. Ele abraça a possibilidade de se tornar um “homem de sucesso” e cospe, em seus auto-elogios, clichês de auto-ajuda e “sabedoria oriental” vendida em livros-para-executivos. Reduz seres humanos e a própria situação apocalíptica a um plano de ação empresarial. Pensa em si e nos outros em termos de sucesso e fracasso, mas não moral.

O conto “Segunda revisão dos julgamentos oportunos pela Corregedoria – Anexo B”, de Rodrigo Assis Mesquita, é uma narrativa de tom kafkiano, na qual a personagem se vê encurralada pelo poder da burocracia governamental. O novum está no modo pelo qual o texto se desenvolve, uma conversa de mensagem por celular, a partir da qual se desenvolve um julgamento, e o motivo pelo qual a ré está sendo condenada nunca fica realmente claro. No texto, a máquina do Estado aparece hostil, e a condenação da personagem é justificada pelo desejo de tornar os processos jurídicos mais práticos e rápidos.

Asas Remotas”, de Renata Ferri, retrata um futuro pós-apocalíptico no qual os poucos sobreviventes de uma catástrofe ambiental – três quartos de nossa população original pereceu – precisam lidar com suas lembranças de um mundo que, agora, soa como extravagante para aqueles que nasceram após a chamada Grande Exaustão. A partir desse novum, a autora ironiza práticas como manipulação genética de alimentos, criação de aves em massa e produção de papel, estabelecendo uma crítica certeira ao modo como temos lidado com a natureza ao longo dos séculos. Grilos, asinhas de frango, aparelhos celulares… tudo isso parece ter desaparecido, e as pessoas agora vivem isoladas nos pequenos perímetros que não foram devastados pelas grandes queimadas dos últimos anos. Um futuro não tão remoto assim.

O conto “O homem da lua”, de Daniel Murta, narra a história de um homem que trabalha em uma base lunar. O enredo se baseia no cotidiano de trabalho na manutenção externa da nave, apresentando as possibilidades científicas. A exploração mineral e predatória na Lua, as más condições de trabalho e a febre da busca por vidas extraterrestres são elementos que constroem o novum. O conto nos traz uma reflexão sobre os limites e as possibilidades construídas pela mentalidade capitalista, sustentada pelo individualismo exacerbado.

No conto “Hipermetropia”, de Francisco Conrado de Lima Alves, encontramos uma invasão alienígena num ambiente mais íntimo do que o que aprendemos a esperar de histórias de ficção científica. O alien, por si só, faria com que o texto fosse enquadrado no primeiro critério, sobre a identificação com ficção científica ou especulativa. No entanto, há outros elementos que confirmam a observação, como a presença da androide babá, OB-79, que executa, com falhas humanas, as tarefas da casa. O relacionamento entre os dois também parece inverter a lógica do
clássico “Robbie”, de Isaac Asimov. Aqui, o estranhamento fica por conta da criança e a humanidade com o robô – que também honra a obra de Asimov ao obedecer suas leis da robótica. Por fim, há a questão do novum. Apesar do fim da história, fica clara a vulnerabilidade dos humanos perante seres que fingem ser um de nós.

Por meio de um futuro pós-rebelião das máquinas, Raquel F. Roza, em “A7021”, descreve uma sociedade distópica baseada no constante trabalho forçado de sua população, agora submissa àqueles que haviam sido originalmente criados para nos servir. Uma adaptação dos abomináveis campos de concentração nos moldes da ficção científica. Em meio a tudo isso, acompanhamos não mais do que dois dias da vida da personagem que dá nome ao conto. Prestes a completar dezoito anos, ela agora terá que abandonar suas amigas na lavoura para trabalhar nas minas, ambiente sufocante e igualmente opressor. Acostumada a contar histórias para as outras garotas de seu dormitório, é ela também a responsável pela mudança de perspectiva que ocorre ao final da narrativa, mostrando que nem tudo é o que parece.

Em “Os filhos dos homens”, de Michel Peres, temos uma história profundamente humana que se passa em Marte. Temas típicos da ficção científica como exploração espacial, trabalho forçado no espaço, robôs e a questão da falta de limites da ganância humana, que é exacerbada no espaço estão presentes. É o novum, no entanto, a chave da história. Com a exploração espacial avançada, a
humanidade já superou o primeiro momento de colonização em Marte e desenvolve múltiplas estações, com características culturais específicas. Aqui, a diversidade não é tomada como  característica necessariamente positiva e as pressões típicas da vida fora da terra se traduzem em abuso de autoridade e experimentos desumanos.

Em “Campo”, de Zak Silva, o leitor depara-se com uma narrativa em tom melancólico, na qual o narrador, um robô, reflete sobre o seu passado. A memória, no entanto, lhe é falha, e ele não é capaz de se lembrar de certos pormenores, ainda que entenda os motivos que o levaram a fazer aquele tipo de trabalho: desmontar outros robôs. É explorado o tema do conflito entre máquinas e seres humanos, comum à obras de ficção científica, e o autor faz referência ao trabalho dos comandos especiais (Sonderkommando) nos campos de concentração, como evidenciado já pelo título do texto. O estranhamento se dá pelo tom melancólico do narrador, cujo lamento é essencialmente humano.

Boa leitura!





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