Segunda revisão dos julgamentos oportunos pela Corregedoria Anexo B

Segue a ata de julgamento de uma das primeiras de milhões de pessoas sujeitas a um julgamento justo e economicamente viável por meio de seus telefones celulares. A ata também faz parte do estudo patrocinado pelo Governo,“É justiça célere para todos: guardando dinheiro para guardar pessoas”.

***

Governo assumiu remotamente o seu celular e criou o grupo “Julgamento.”
Governo ligou o microfone, a câmera e o GPS de alta precisão.
Supervisores ocultos do Governo entraram no grupo.
Juiz entrou no grupo.
Juiz adicionou você coercitivamente, a Ré, de acordo com o Código de Processo Penal.
Juiz decretou segredo de justiça.
Sessão de julgamento começou.
Juiz, lendo a lei de outra janela: “A audiência começou. Um relato objetivo de tudo o que for dito e de cada ação capturada pelas câmeras dos celulares será aqui transcrita em tempo real. A íntegra da ata judicial, ou parte dela, será usada ou editada contra a Sra. de acordo com o interesse público, nos termos definidos pelo Governo.”
Ré franziu o rosto.
Juiz: “As acusações serão ajustadas à pena.”
Ré sorriu maliciosamente: “Lu, você tá me zoando?”
Juiz, impassível: “Sua esposa é amável, mas não sou ela.”
Ré coçou o queixo: “Isso é verdade?”
Juiz: “Verdade tão verdadeira quanto Deus. O tique dourado ao lado do meu nome certifica que sou uma autoridade do Estado.”
Ré bebericou café do copo de poliestireno: “Vou rodar o antivírus—”
Juiz alertou: “O Governo desabilitou seu acesso ao celular; tentar deixar o aparelho ou sair desta tela apenas prejudica a sua defesa.”
Ré tocou a tela com o dedo indicador.
Juiz: “O botão de ligar/desligar está desabilitado também. Devo avisá-la ainda de que, caso seu celular fique sem bateria, será considerada culpada até o limite máximo da legislação.”
Ré, de maneira suspeita: “Eu não concordei com isso.”
Juiz reclinou-se na cadeira: “A Sra. deu consentimento no momento em que desembrulhou o seu celular. Está tudo detalhado no Contrato de Licenciamento de Usuário Final, também conhecido como ‘EULA’, dentro da caixa.”
Ré: “Então quero retirar a minha autorização.”
Juiz: “A Sra. renunciou ao direito de fazê-lo. Há uma cláusula expressa no aludido EULA.”
Ré deu um grito estridente: “Você não pode invadir a minha privacidade desse jeito! E não dei nenhum gritinho estridente!”
Juiz ensinou à Ré: “Uma cidadã de bem, cumpridora da lei, não tem nada a esconder. A Sra. pode ficar tranquila, pois a ata de julgamento é objetiva.”
Ré: “Cadê os outros? Tipo, o promotor de justiça?”
Juiz: “Por questões orçamentárias, o Governo fundiu todas as funções judiciais e relacionadas ao Judiciário em uma só. Eu sou a Justiça.”
Ré olhou para alguém fora da tela – pessoa identificada pelo Governo como Jonas Silva, cujos dados completos foram enviados ao Juiz – e perguntou: “Ô, Jonas, me empresta seu celular? Preciso dar uma ligada pra minha esposa.” Juiz: “Relacionar-se com terceiros pode torná-los criminalmente corresponsáveis. Pode acrescer participação em organização criminosa à sua já longa lista de acusações.”
Ré balançou a mão direita, arrogantemente, e disse a Jonas: “Deixa quieto.”
Ré voltou o rosto para a tela: “Só queria saber como elas estão e contar o que tá acontecendo.”
Juiz: “Ela está com a sua filha Telma no endereço a seguir.”
Foto e mapa foram subidos na janela de julgamento.
Juiz continuou: “Elas vão jantar no Ristorante Domenico. Polpetta. Boa escolha. A Sra. não precisa se preocupar com elas.”
Ré, fraca, implorou: “Não faça nada com elas.”
Juiz: “Não me dê justa causa para adicioná-las a este grupo.”
Ré, gaguejando: “Por favor.”
Juiz: “Vejo do seu histórico de compras e dos seus dados financeiros que não tem condições de pagar um advogado sem prejuízo da sua subsistência. A Sra. deseja assistência judiciária gratuita?”
Ré curvou-se levemente e balançou a cabeça positivamente.
Juiz: “Mil escusas. Eu continuo obrigado a fazer essa indagação porque o regimento interno do tribunal ainda está em revisão para se adequar à Lei de Equalização, ao Decreto de Liberdade Aprofundada e à Circular de Óbice ao Intermediário, mas a assistência judiciária foi revogada. Chega de advogados ou aproveitadores.”
Ré: “Você pode me dizer o que que eu fiz de errado?”
Juiz suspirou: “A Sra. sabe muito bem o que fez.”
Ré insistiu: “Tenho o direito de saber.”
Juiz, com um olho espasmando: “Você tem, Sra. [censurada]?”
Ré: “Meu nome não é [censurada], é [censurada].”
Juiz não se afetou.
Ré: “Quais são as acusações?”
Juiz: “Como disse anteriormente, elas são irrelevantes. De todo modo, asseguro à Sra. que o Estado a está acusando apropriadamente de acordo com o devido processo legal.”
Ré: “Posso dar uma olhada detalhada nas acusações?”
Juiz: “Depois da condenação.”
Ré: “Estudei Direito por um ano antes de mudar de curso em —”
Juiz interrompeu a Ré: “Você não tem licença para advogar.”
Ré disse, envergonhadamente: “Ah, não, eu —”
Juiz emendou: “Então agora a Sra. também é acusada de sabida imperícia legal.”
Ré opôs objeção: “Mas imperícia sugere que eu seja uma advogada habilitada.”
Juiz indeferiu, emendando as acusações mais uma vez: “Mais um crime.”
Ré opôs outra objeção processual, sem fundamento: “Por acaso este processo criminal é lícito?”
Juiz indeferiu: “No caso Governo v. o povo e outro povo, a corte suprema
decidiu que a justiça enxuta é constitucional. Como bem disse Ruy Barbosa (1921), ‘justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta’”.
Ré disse com desdém: “Isso é ridículo.”
Juiz decidiu: “Isso é crime de atentado à dignidade da justiça. Dois a três agravantes acrescidas à sua sentença.”
Ré levantou a voz: “Não vi nenhuma sentença. Já fui condenada?”
Juiz: “Vamos ser civilizados. Estou tratando a Sra. com respeito, então espero reciprocidade. Ademais, se a Sra. está sendo processada, então já não é uma boa pessoa, certo?”
Depois de um momento de silêncio, o Juiz riu com eminência: “Sua esposa contou uma piada engraçada para a Telma. Perdoe-me por me intrometer, mas acabei ouvindo a conversa delas. Mulher interessante.”
Ré perdeu o fôlego e arregalou os olhos.
Juiz prosseguiu: “Deseja produzir provas?”
Ré: “Sim.”
Juiz decidiu: “Provas produzidas. Temos todos os seus dados: registro de chamadas, mensagens de texto, mensagens de texto deletadas, histórico de localização, histórico pessoal, arquivos de áudio e respectivas transcrições, gravações de robôs domésticos e respectivas transcrições, informação de DNA, arquivos médicos e de seguro, arquivos de escova de dente.”
Ré peticionou: “Eu requisito uma cópia, por favor.”
Juiz decidiu: “Claro. Será enviada ao seu e-mail. Deve chegar na sua caixa de entrada no prazo de dois a sete dias úteis.”
Ré suspirou aliviada: “Então o julgamento será adiado até a chegada do arquivo?”
Juiz desconsiderou a indagação da Ré: “A Sra. não prestou atenção? Trata-se de justiça extrema e célere.”
Ré: “Isso não é devido processo legal. Sou inocente até que se prove o contrário.”
Juiz emendou o libelo acusatório mais uma vez: “Mais uma acusação de imperícia e outra séria infração adicional – uma que nem vou contar para a Sra. de tão grave. Sua conduta neste julgamento está lamentável, bem aquém do esperado de alguém como a Sra.” Olhando brevemente para a sua tela, o Juiz ponderou: “As provas contra a Sra. são avassaladoras. Mas…” Juiz coçou o queixo. “Há uma opção para atenuar a sua pena ou, quiçá, até absolvê-la.”
Ré respirou fundo e perguntou: “Como?”
Juiz: “É só delatar. Quanto mais envolvidos a Sra. entregar à Justiça, mais atenuantes acumula, inclusive se tornando apta a pleitear suspensão da pena. Além disso, por cada pessoa delatada, a Sra. ganha um número que, se for sorteado pelo Juiz de execuções penais, pode levar ao perdão da sua pena. Se delatar pessoas da família, então, ganha dez números extras por cada delatado.”
Ré: “Eu não fiz nada, minha família não fez nada…”
Juiz: “Pense bem, Sra. [censurada]. A sua esposa, livre e despreocupada, está tomando um sorvete agora, de sobremesa, jogando conversa fora com a sua filha.”
Apareceu uma pequena janela transmitindo ao vivo o jantar da esposa e da filha da Ré.
O rosto da Ré brilhava de suor.
Juiz: “Quem disse, por exemplo, que a sua esposa não aceitou o mesmo acordo?”
Ré gaguejou: “Ela… ela nunca me falou nada.”
Juiz: “Não, nunca falou. Mas se tivesse falado, teria os benefícios revogados e, a esta altura, estaria cumprindo pena. O acordo fica sempre sob segredo de justiça.”
Ré olhou para o vídeo sem piscar.
Juiz: “Vou fazer uma última proposta: se a Sra. denunciá-la agora, as duas ficam livres. Porém, se só uma das duas denunciar, a outra é condenada e a execução da pena começa imediatamente.”
Ré murmurou, quase inaudível: “Ela tem andado estranha ultimamente… Mas quem vai cuidar da Telma?”
Ré endireitou-se na cadeira e, balançando a cabeça negativamente, falou baixo: “O que tô falando? Não.”
Juiz: “Perdão?”
Ré ergueu a voz: “Não. Minha resposta é não.”
Juiz estalou a língua.
A janela de vídeo fechou.
Juiz: “Muito bem. Que não se alegue depois que falta à Justiça razoabilidade.”
Juiz: “Ante todo o exposto, a Justiça declara a Sra. culpada de todas as acusações.”
Juiz mudou o status da Ré para Criminosa condenada.
Criminosa peticionou: “Posso ao menos contar pra minha esposa e pra minha filha o que aconteceu comigo? Pelo menos uma despedida?”
Juiz: “Contato com a sua antiga família é proscrito pela lei. Opiniões indicaram que não é útil ao processo de dessocialização do criminoso.”
Criminosa apelou: “Só umas mensagens de texto pequenas, ou uns dez segundos no telefone.”
Juiz negou provimento: “A Sra. se colocou nessa situação. Deveria ter pensado melhor antes de fazer o que fez.”
Criminosa enterrou o rosto sob as mãos: “Eu nem sei o que eu fiz!”
Juiz admoestou: “Todo mundo diz a mesma coisa. Chega de chicanas jurídicas.”
Juiz finalizou o julgamento justo: “Haja vista a improcedência da sua apelação, a sentença transitou em julgado, não podendo mais ser modificada. As despesas processuais serão descontadas da sua antiga família.”
Juiz se levantou: “Os agentes da lei já estão prestes a adentrar o seu local atual. Boa tarde.”
Juiz deixou o grupo.
Criminosa esperou enquanto assistia a uma propaganda do Governo narrada por uma voz alegre: “[censurada], parabéns por ter sido aleatoriamente selecionada para ser julgada de modo justo pela versão beta do Julgamentos Oportunos®, aplicativo trazido até você pela Gov S.A. em parceria com o Governo. Quem quer perder anos numa batalha jurídica? Em breve, Julgamentos Oportunos® alcançará o povo todo. Por favor avalie a sua condenação. Tenha um bom dia!”





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