O Homem da Lua

Um humano na terra que nunca tenha ido ao espaço, há de fantasiar sobre o mesmo em algum momento – ou em muitos momentos – da vida. Pouco existe de tão fascinante quanto à vastidão do cosmos.

Para os que já estão no espaço, as coisas nem sempre são tão interessantes assim.

Indivíduos como Rafael Laguna, brasileiro de nascença, designado à base lunar Latino-Americana Kylia, tendem a perder o fascínio rapidamente. Rafael é mecânico estrutural e compõe o núcleo de assistência e reparo de todo o maquinário que constitui a instalação.

A paisagem como a vista da Lua é uma imensidão negra, ora vazia e aterradora, ora salpicada de pontos de luz brilhantes. Ocasionalmente, tal cenário é acrescido de um encantador planeta azul. Rafael, que se considera um “peão espacial”, acredita piamente que a admiração dos astros cabe aos sonhadores e cientistas. Depois de uma semana vivendo em Kylia, já nem lançava um olhar
quando passava pelas janelas, assim como os terráqueos tornavam-se insensíveis à vista das próprias janelas.

Rafael também logo se cansou do outro grande atrativo do espaço, a falta de gravidade. Já dava sinais de desinteresse logo em sua chegada. O primeiro passeio externo na Lua era um evento de boas-vindas aguardado. Rafael, que já se considerava aclimatado a não-gravidade, graças ao programa de treinamento, prontificou-se a ser o último do grupo. Se fosse ainda que um pouco mais sisudo, talvez tivesse dispensado completamente o tour. Deu os primeiros passos, pequenos para um homem, menores ainda para a humanidade, e logo deu-se por satisfeito. Rafael dizia para quem quisesse ouvir que a sensação de leveza estava longe de se aproximar da intensidade explosiva de um rush de adrenalina provocado por um salto de paraquedas ou pela excitação máxima de uma transa bem-feita. Ironicamente, nunca havia saltado de paraquedas e sua vida sexual notadamente falida pouco contribuía para a efetividade de suas observações.

Em meio a reclamações constantes, Rafael era frequentemente questionado “Por que trabalhar no espaço então?”. A resposta era sempre a mesma, mecânica e sem variações, nem mesmo de tom: “Eu entendo demais desse maquinário aqui e preciso de grana”.

A necessidade por dinheiro era a principal engrenagem de locomoção de Rafael desde que se entendia por gente. Nenhuma quantidade parecia lhe bastar e assim acumulava hora extra, adicional noturno, de fins de semana e feriados. O próprio nunca foi capaz de apontar ou assumir a razão de ser dessa ânsia, dada à completa falta de autoconsciência e autorreflexão. Ainda assim, qualquer terapeuta do século XXI conseguiria elucidar essa característica discorrendo sobre a falência financeira do pai que resultou em sua mãe lhe abandonando.

O serviço de manutenção externo se diferenciava do interno meramente pela frequência com que eram necessários. O cotidiano espacial real em nada se assemelha ao fictício, sempre marcado por tempestades solares, fragmentação ou chuva de meteoros. Encanamento, fiação e congelamento correspondiam à vasta maioria das ocorrências que demandavam a atenção de Rafael e dos outros “peões espaciais”.

Numa dessas missões cotidianas, Rafael deparou-se com uma placa de gelo particularmente problemática no exoesqueleto da base. Pelo rádio interno, solicitou apoio de sua colega de serviço, Márcia Gonzáles, colombiana com mais tempo de lua que o próprio Rafael. A total ausência de intercorrências nesse tipo de tarefa tão convencional fez com que Rafael se preocupasse bastante quando Márcia não lhe respondeu de volta. Confirmou o funcionamento do sistema de comunicação com uma breve ligação para o interior, então voltou a chamar a mulher. Mesmo com pouco
conhecimento de física relativa quântica, Rafael era capaz de afirmar de boca cheia que o tempo no espaço corria diferente. Assim esperou o que lhe pareceu o bastante antes de deixar a placa de gelo de lado e procurar a companheira de missão.

Encontrou-a parada não muito longe dali, agachada e debruçada sobre alguma coisa. Aproximou-se lentamente, temendo se deparar com alguma cena assustadora. Respirou fundo e tocou no ombro da mulher. Foi Márcia quem se assustou, indo ao chão desajeitadamente, sem o peso da gravidade. Recompôs-se ao som de ofensas em espanhol, que Rafael conhecia muito bem. Mulher carrancuda e séria, Márcia nunca fora afeita de brincadeiras de assustar. Em mais de uma ocasião acertou a fuça de colegas de trabalho que gostavam de pregar peças uns nos outros. Segundo ela, o espaço sideral era dotado de um poder infantilizador sobre os homens, que se matavam de rir encenando clássicos do cinema, fazendo desafios acrobáticos na gravidade zero e
urinando dentro dos uniformes. Nisso ela respeitava Rafael, apesar de não simpatizar muito com o mesmo. Simpatia nunca fora o forte de nenhum dos dois.

Recobrada, Márcia prontificou-se a esconder um objeto nas costas. Rafael, sentindo-se idiota pela preocupação, pressionou a mulher até ela revelar o que trazia escondido. Um fragmento de gelo do tamanho de uma maçã. Ao inspecionar a pedra, Rafael notou uma mancha marrom esverdeada. Márcia aproximou o objeto no próprio peito, temendo que Rafael pudesse lhe
roubar, enquanto anunciava a descoberta que havia feito. A forma verde se assemelhava ao musgo terrestre, porém na superfície lunar, exposto ao vácuo e a radiação. Rafael contava nos dedos os aspectos da biologia que conhecia. O mais importante deles era que organismos vivos não sobrevivem ali fora. Pelo menos não aqueles que nos são conhecidos.

Com garantias mil de que não faria nada, pegou a pedra em mãos, para analisar em detalhes. A lente do capacete, dotada de um visor de realidade aumentada, era capaz de ampliar imagens, como em um zoom. Nada que permitisse análises microscópicas complexas, mas que no dia-a-dia era essencial para o manuseio de microcircuitos. Ignorando os avisos de Márcia, que dizia já ter feito aquilo, Rafael amplificou a imagem o máximo que pôde sem perder resolução, até enxergar com certa clareza o aspecto definitivamente orgânico da substância, que parecia formada por inúmeros micro-seres.

Devolveu a pedra com relutância, enquanto seu cérebro processava dezenas de possibilidades. Historicamente, o acaso havia sido apontado como o responsável por diversas descobertas notáveis. Em muitas dessas situações, o descobridor tornara-se tão imortal quanto suas descobertas. Lembrou-se de Cabral, que encontrou o Brasil enquanto caminhava para o outro lado do mundo e então sentiu um gosto amargo na boca quando entendeu que o Cabral ali era Márcia, descobridora do que poderia muito bem ser o primeiro contato extraterrestre de terceiro grau. E tudo porque, naquela fatídica manhã, Rafael optara por tomar o caminho da esquerda e resolver o problema mais complicado e que lhe permitiria um tempo maior de solitude.

Enquanto isso, Márcia fantasiava as possibilidades. Seu nome chegando tão longe quanto as colônias de Marte e da lua jupteriana Europa e de volta para casa, na Terra. Um comitê de honras a receberia na Colômbia, onde seria vista como a maior mulher da história do país. Seu nome inscrito nos livros enquanto a humanidade ainda existisse.

Rafael também visualizava tudo isso, quase como que por transferência telepática. No entanto, o fazia de outro ponto de vista, dotado de um sentimento um pouco diferente. Se a colombiana mal conseguia conter a empolgação, o brasileiro se enchia de uma agonia crescente, fruto de um “quase” tão cruel. Que azar maldito havia lhe caído sobre sua cabeça, que fizera com que perdesse por tão, tão pouco a chance de um prêmio multimilionário. Certa vez assistira numa transmissão ao vivo um grupo de cientistas americanos receber um Nobel pela invenção do purificador de água antirradiação, que tornou a Lua Europa uma fonte de água potável semi-infinita. Na ocasião cada cientista recebeu um prêmio de um milhão de dólares-reminbi, fora as patentes. E Rafael sabia que aquilo não era nada diante da descoberta de um ser vivo extraterrestre. O lucro de prêmios e a eventual venda do espécime significavam o fim do trabalho e da vida na lua. Tudo isso bem ali, nas mãos de Márcia.

E então o deslumbramento de Márcia transformou-se em medo ao olhar nos olhos de Rafael. Brilhavam arregalados, enquanto o homem se refestelava em fantasias de poder, bem ao seu alcance. Com a voz engasgada, ofereceu a ela uma parceria. A chance de dividir os louros da descoberta. Segundo ele, ambos eram igualmente merecedores e responsáveis, afinal de contas, Márcia só estava ali para descobrir a criatura por culpa dele, que escolheu o serviço mais difícil, a priori, de responsabilidade dela, que tinha mais tempo de casa.

Márcia tentou esconder a indignação o máximo que pôde e refutou o argumento de Rafael de forma polida e formal. Enquanto falava, caminhava para trás, distanciando-se. Rafael deu um passo adiante e a picareta em sua mão se destacou sob o olhar de Márcia, que engoliu seco e mudou o próprio discurso. Decidiu que, ao menos ali fora, à mercê da vontade de Rafael, ceder era a melhor
escolha. Propôs uma divisão de lucros 50-50. Rafael nada disse. Optou pelo silêncio pois já havia se decidido.

Saltou para Márcia, como se estivesse embaixo d’água. Ela tentou se virar para correr, mas não conseguiu. Largou a pedra com o organismo vivo enquanto a mão de Rafael empurrava sua nuca contra a parede externa da base. O primeiro golpe, amaciado pela falta de gravidade, trincou o visor do capacete. O segundo golpe, partiu-o por completo. Márcia se contorceu, enquanto seu corpo era congelado e o sangue vertia por todos os seus orifícios, dada a pressão externa.

Rafael largou o corpo da mulher e o observou ir ao chão lentamente. Parecia um balão murcho, com linhas de sangue se espalhando como tentáculos.

Não tardou a encontrar a pedra de gelo, caída e intacta, pela queda em baixa velocidade. Sorridente em delírio, mandou um pedido de socorro para a base, clamando que Márcia havia se acidentado. Extasiado, demorou a entender o comunicado da base de que seus sistemas de manutenção vital estavam se desligando um a um. Quando finalmente compreendeu o alerta, olhou para o próprio corpo. Encontrou um rasgo imenso e letal na própria cintura.

Bastou um relance para que Rafael avistasse a chave de fenda entre os dedos enrijecidos de Márcia. A falta de oxigênio lhe sufocou antes que pudesse ter qualquer reação de raiva ou arrependimento. Morreu em instantes, asfixiado em extrema agonia, completamente sozinho. Nada muito diferente de sua vida.

Quando a equipe médica resgatou os corpos, não tardou em encontrar a pedra de gelo com um aparente ser vivo incrustado em sua superfície. O responsável imediatamente comunicou o departamento de pesquisas biológicas, que recolheu a amostra para análise. Confirmaram rapidamente a própria teoria. A pedra de gelo continha uma colônia de tardígrados geneticamente modificados e consideravelmente maiores que os outros de sua espécie. Os pequenos animais, também conhecidos como ursos-d’água, haviam sido desenvolvidos ali mesmo, como parte de um experimento, e haviam sido dispersados ali acidentalmente.

Conhecidos pela capacidade de sobreviver em ambientes extremos, na ocorrência de água, estavam em estado de hibernação no casco da base.

Quanto ao destino de Rafael e Márcia, sobrou apenas a especulação, por parte dos colegas. A teoria vigente indicava um desentendimento amoroso transformado em tragédia.





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