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I

 

Depois do nervosismo e apreensão, o alívio. Seu corpo ainda estava desacelerando devido ao recente estresse causado nele. Desacelerando: não só ela, mas tudo à sua volta. Soltou seu cinto de segurança e foi espiar pela janela. Era verdade o que Yuri havia dito: era azul, e não verde como as histórias de ficção científica que crescera lendo a descreviam. Era uma imagem tão linda que era difícil não se emocionar. Por vezes, uma sensação de que aquilo que estava vendo não era real lhe acometia. Ela não tentava espantar essa impressão, até chegava a curtir esse afastamento. Riu desse pensamento. Impossível estar mais afastada do que isso, não? Ou será que era possível ir ainda mais longe? O que haveria para lá da escuridão? Talvez em breve ela – e toda a humanidade – descobrisse. Como seria uma vida tão diferente que nem é possível imaginá-la? O pensamento era contraditório por si só, ela sabia, mas continuava tentando montar o inimaginável em sua cabeça. Talvez fosse como um daqueles monstros com olhos de insetos… Como seria ter uma consciência diferente da humana? Como acessar tal forma de pensar? Como se comunicar e estreitar relações? Bom, quando chegar a esse ponto várias pessoas muito mais capacitadas tentarão achar soluções, ela pensou. Será que estava muito velha para tentar uma formação? Talvez pudesse virar uma engenheira… O futuro se abria de muitas formas diferentes, quase tão vastas quanto o próprio universo. 

 

II

 

Sentou novamente e consultou seu relógio. Desde a decolagem, já havia se passado duas horas. Ainda tinha mais quarenta e seis pela frente. Tentou se comunicar com a Terra, mas o sinal estava falhando. Queria felicitar os colegas pelo feito e contar a eles como a vista era incrível. Gostaria de poder abraçá-los, mas dois dias passam rápido e em breve estariam juntos novamente. Que conquista espetacular para a humanidade, poder sair do planeta que sempre foi sua casa. Quantos filósofos, cientistas e escritores já tinham sonhado com isso? E ali estava ela, orbitando a Terra. Torcia para que no futuro essa viagem fosse tão comum quanto as de trem. Queria que todas as pessoas pudessem ver quão bonito é o planeta, e quão imenso é o espaço que as cerca. Era realmente notável o quanto a humanidade havia avançado em pouco tempo. E quanto mais ainda havia a avançar! Erradicação de doenças, máquinas para realizar o trabalho humano e, quem sabe, a colonização de outros planetas.

 

III

 

Quando era criança, Valentina sonhava em conhecer o mar. Escutava com atenção os relatos de quem já tinha visto a imensidão de água azul que se confundia com o céu no horizonte. Dali de cima, no entanto, o azul do mar não se misturava com o céu. Ficava preso naquela bola imensa e cheia de vida a rodar pelo espaço. Era curioso poder ver com os próprios olhos como os oceanos eram grandes, e os continentes, onde os seres humanos se concentravam, menores. Todas as disputas, todas as conquistas, estava tudo praticamente restrito àqueles espaços de terra. Quanta vida cabia por metro quadrado? Quantas histórias incríveis, quantos amores, alegrias e dissabores? A sensação de ver a Terra de cima era parecida com a de ver um formigueiro: ela tentava imaginar o que se passava lá embaixo, da onde vinham e pra onde iam aquelas vidas minúsculas, invisíveis a ela, mas cheias de significado. Vista de cima, a humanidade era uma só, mas lá embaixo os conflitos separavam até os mais próximos. Pensou nas pessoas que eram próximas a ela e que o tempo foi afastando. De algumas, já não lembrava mais o que havia feito elas deixarem de se falar. Ainda que fosse algo grande à época, agora parecia insignificante. De outras, guardava uma pequena mágoa e desejava que tudo pudesse ter sido resolvido de outra forma. 

 

IV

 

Havia trajetórias que se assemelhavam a uma estrada reta. A vida de Valentina parecia mais esses rios vistos de cima, que se desdobram em vários cursos e que às vezes voltam a se encontrar, mas que na maior parte das vezes se dispersam. Quanto dela ela foi deixando pelo caminho? Quanto dela se perdeu? Era possível recuperar? Ela queria voltar a ser a pessoa que deixou para trás? Enquanto pensava sobre tudo isso, a sua esfera continuava a rodar e rodar. A vida lá embaixo continuava seguindo em frente – ou às vezes escapulindo pelas laterais.

Queria poder conversar com alguém, estava se sentindo sozinha. Pensou sobre todas as etapas que levaram ela a estar naquele momento ali, entre as estrelas. Foi uma preparação difícil, e ela achou que não conseguiria. Achava as outras candidatas melhores, mais bem preparadas. No fim, mesmo tendo sido a escolhida, ainda duvidada de si mesma. 

Já havia se passado pouco mais de doze horas desde seu lançamento e ela já havia dado doze voltas completas na Terra. Pensou em comer alguma coisa antes de dormir, mas lembrou que mais cedo a comida havia lhe deixado enjoada e desistiu. Fez algumas anotações, tirou mais algumas fotos e deitou. 

 

V

 

Teve sonhos curiosos. Em um deles, encontrava uma famosa cantora que lhe contava odiar  aspargos. Em outro, era novamente uma estudante. Estava atrasada para ir à escola e não conseguia encontrar seus livros. Pessoas apareciam na sua frente, bloqueando a passagem e a atrasando ainda mais. Acordou num susto, com a sensação de que precisava se apressar. Aos poucos, foi saindo do reino dos sonhos. As lembranças de sua vida, desde que estava no colégio até agora, chegaram a sua consciência como uma enxurrada, apagando violentamente a impressão que o sonho havia lhe causado. De uma só vez, lembrou-se que sua vida agora era outra, já era formada há vários anos, tinha um emprego, uma casa, novos amigos e interesses. Ainda de olhos fechados, pensou no quarto da casa dos seus pais onde estaria acordando caso sua vida ainda fosse a do sonho. Suas bonecas em cima da cômoda, sua colcha colorida… Quando finalmente abriu os olhos, levou um susto. Havia se esquecido momentaneamente de que estava no espaço, a quilômetros de distância de seu endereço atual. Riu de si mesma, ao mesmo tempo em que uma certa saudade misturada com melancolia tentava se instalar nela. Quantos sentimentos era possível experimentar ao mesmo tempo?

 

VI

 

A saudade de casa, da família e dos amigos foi aumentando ao longo do dia. Além disso, seu corpo começava a dar sinais de que queria se mexer, se esticar, o que era impossível naquele momento. Em geral, ela lidava bem com a solidão e gostava de ficar sozinha. Nunca, no entanto, tinha lidado com uma solidão tão absoluta, tão total. Diante das estrelas, Valentina refletia sobre como sozinha a vida parecia perder muito do seu sentido. Gostaria de ter alguém ao seu lado para compartilhar a beleza e a grandiosidade ao redor. Quando voltasse à Terra, contaria tudo o que viu e sentiu, mas sabia que não seria a mesma coisa. Como traduzir em palavras o infinito negro? Como explicar a emoção de ver essa esfera azul de cima, casa da humanidade e de tudo o que ela conhece? Gostaria de ter mais habilidade na escrita. Imagina o que um escritor-cosmonauta poderia produzir! Se, como acreditava, as viagens espaciais se tornassem comuns no futuro, ainda poderia ler, através das palavras de outra pessoa, uma descrição sobre os sentimentos que estava experimentando e não sabia ao certo como traduzir. Engraçado isso, procurar no outro uma explicação sobre si mesmo. Mas não era isso o que a literatura proporciona, um entendimento maior e mais profundo sobre coisas que  nos tocam e nem sempre sabemos como expressar?

 

VII

 

Lembrou sobre a ideia de universos paralelos: mundos praticamente iguais, coexistindo em frequências diferentes. O que as diferentes versões de si mesma estariam fazendo nesse momento? Teria uma cópia perfeita de si orbitando sua própria Terra? Como ela estaria se sentindo? Pensou novamente nos rios e suas bifurcações. Se tivesse optado por outros caminhos, aonde eles a teriam levado? Ela nunca imaginou chegar tão longe, mas se isso foi possível, será que podia conquistar ainda mais? Era “noite” novamente, ao menos na parte do globo em que morava. Dali a algumas horas estaria de volta em terra firme. Poderia continuar sua vida de onde havia parado, ou poderia partir para uma nova trilha, um novo rumo. Havia tanto do mundo – e do universo – para desbravar. Ela estava só no começo.





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