A AULA DO PROFESSOR REYNOLDS

Mesmo após vários meses, ainda era difícil para Saggo Khyr acreditar em seus próprios olhos quando colocou o uniforme dourado da Alas Enterprise pela última vez. Sendo o mais novo de sua classe a frequentar a Academia, as chances dele atingir o patamar Estelar não eram exatamente as melhores, especialmente se tratando de um projeto envolto em tamanha magnitude e mistério. Agora, a milhões de anos-luz de distância, ele ainda conseguia sentir a atmosfera pesada na sala de reunião movimentada, quando a equipe ficou sabendo sobre a descoberta. Nós encontramos a Fronteira, Doutor Mirkh’h disse, com seus lábios tremendo de medo e curiosidade, enquanto anunciava os detalhes do limite do universo pelo microfone discreto da bancada. 

Apenas alguns meses depois e lá estava Saggo, encarando a si mesmo no espelho de uma cabine apertada, enquanto se certificava que a ponta da seta vermelha no uniforme estava perfeitamente alinhada com a extremidade de sua orelha esquerda. Se tornou obcecado pela perfeição de todo o detalhe para aquele grande momento. As câmeras posicionadas ao longo de sua nave e capacete apontavam diretamente para a Fronteira, para que todo o time de vigilância testemunhasse tudo, ou a completa ausência de qualquer coisa. 

O relógio de pulso bateu T menos 5 minutos assim que a rampa começou a se estender por baixo da nave de exploração. Saggo Khyr conseguia sentir o movimento mecânico com a ponta de seus dedos do pé. Prontamente, acoplou o capacete prateado em seu uniforme perfeitamente alinhado, olhando para si mesmo uma última vez. Vinte e oito anos realmente passaram rápido, disse para si mesmo, passando as mãos pelo cabelo azul-escuro, penteado para o lado com precisão cirúrgica. 

Pela primeira vez em mais de dez anos, ele se perguntou se haveria tempo para deixar uma mensagem para o pai, um pensamento que não poderia passar pela sua mente em qualquer outra circunstância. Talvez algumas pessoas lidam com rancor de maneiras diferentes, refletiu. Talvez o homem não conseguia processar a perda de uma esposa e teve que deixar tudo para trás, incluindo seu filho. Encarar a Fronteira deu à Saggo uma nova perspectiva sobre como doze trilhões de almas eram tão similares e, ao mesmo tempo, tão distintas. Quem poderia dizer onde ele estaria se fosse sempre tratado com respeito e compaixão, se fosse perdoado. Estava contente onde chegou, e Alas Enterprise era o ápice da existência para qualquer jovem da Federação. Qualquer jovem que ele conhecia, no caso. 

Não havia mais tempo para refletir no passado. O Comandante Uj deu ao corajoso explorador um último discurso cativante de boa sorte através do Intercom, por onde Saggo pôde ouvir os murmúrios nervosos de uma sala lotada onde todos observavam cada movimento que fazia. As portas estavam se abrindo. 

O tripulante oficial S. Khyr deixou os olhos avaliarem a nave por um momento, melancólico pelo ambiente onde havia passado os últimos oito meses de sua vida trabalhando, comendo e dormindo. Mas não havia motivo para nostalgia; ele voltaria para ela e, em breve, o universo inteiro conheceria seu nome. 

Durante as manutenções do veículo, era comum para Saggo observar as estrelas cintilando através das portas entreabertas da nave enquanto ele pairava sem peso pela passagem, com nada entre o habitat e o infinito do cosmos. Ele então saltava em um belo esquecimento, sentindo conforto com o calor entregue pelos gigantes de fogo, com seus raios de energia gentilmente repousando contra o visor do capacete, acariciando seu rosto verde e jovem. Mas naquele momento, pela primeira vez em todas suas viagens, não havia nada. Uma completa ausência de tudo. Eu realmente estou na Fronteira, ele pensou consigo mesmo, reprimindo sua mistura de pânico e excitação. Olhando para baixo ao longo da escuridão infinita, estava a rampa por onde iria caminhar; 30 metros de comprimento, 2 de largura, instalada especificamente para aquela ocasião. A Alas Enterprise adorava dar um bom show aos investidores. 

Da mesma maneira que ele havia aprendido a pular de cachoeiras e falar em público, Saggo sabia que a melhor coisa a se fazer em situações tensas era simplesmente começar, sem hesitação. Passo a passo, ele caminhou na prancha gélida, olhando para frente sabendo que seus olhos eram também os olhos de cientistas, banqueiros e diplomatas, todos encarando a escuridão absoluta através de suas lentes. A passarela terminava com dois cones de luz em cada extremidade, brilhando em um flash de branco pálido. No caso, as luzes existiam apenas quando a prancha ainda estava se estendendo, antes de atingir o comprimento final. Quando terminou, não haviam luzes; a prancha havia passado pela Fronteira. 

O viajante parou de caminhar, apenas dez centímetros antes da escuridão. Vá em frente, Khyr, Estamos aqui com você, Doutor Mirkh’k falou calmamente pelo Intercom. Pela primeira vez naquela curta caminhada, Saggo olhou para baixo pelo canto esquerdo da prancha, na muralha do abismo, que criava um faixo de luz côncavo enquanto penetrava o horizonte, separando o universo entre tudo que havia e tudo que não havia. 

Só tinha mais uma coisa a se fazer. Saggo Khyr alcançou lentamente sua mão no nada. Havia encostado em algo. 

Comando, estou tendo uma leve resposta física, ele disse, antes de perceber que não havia mais feedback no Intercom, ou os murmúrios de curiosidade dos espectadores, numa sala a uma distância inconcebível de onde estava. Quando tentou retornar para a nave, ela não estava mais lá, assim como toda nuvem cósmica ou constelação que ele conhecia. Não havia Fronteira, ou universo. Saggo havia se unido à escuridão. 

Comando, me tire daqui! Ele gritou, mas não houve resposta para ecoar em seu capacete. Até na ausência de peso do espaço havia uma certa excentricidade de sensação e gravidade palpável, mas ali parecia que seus braços, cabeça e pernas não estavam realmente lá, como se sua consciência simplesmente flutuasse dentro da ilusão de um corpo. 

Em silêncio, o explorador flutuou por um período indeterminado de tempo enquanto tentava estabelecer contato, como foi treinado a fazer em situações como aquela. Com certeza, havia alguém ao seu resgate. Com certeza. Enquanto se acostumava à escuridão, tornou-se cada vez mais difícil tentar manter uma noção de espaço e tempo. Se é que essas dimensões ainda existiam. 

De repente, houve som. Uma breve frequência na distância que o lembrou do seu primeiro visor portátil Visioneer, em que o jovem Saggo vestia à noite em seu quarto para assistir as aventuras de Kodor Kill, o guerreiro mais valente de todo o universo. Enquanto Kodor lutava contra exércitos em sua bela armadura brilhante, os ouvidos juvenis de Saggo captavam um leve rubor de estática, como se insetos minúsculos estivessem presos dentro do visor.  

Tem alguém aí? Por favor! Ele gritou novamente, com o pouco de esperança que ainda tinha em sua garganta. 

Para sua surpresa, tinha. 

“Ei” disse a voz, feminina e tímida. Seus tons eram tão infinitos quanto a escuridão em volta dele, vindo de todas as direções mas, estranhamente, também de dentro da sua própria cabeça. 

Eu não estou mais ciente da minha posição, e preciso de feedback sobre meu resgate imediatamente. Tudo me leva a crer que fiquei cego. Coloque Mirkh’h no Intercom, agora. A voz misteriosa, por mais breve que fosse, retornou para Saggo a compreensão de quem ele era e a importância da missão que tinha naquele momento. 

Quem poderia estar falando com ele? Sua nave não estava nada perto do checkpoint mais próximo da Federação. Na verdade, o seu quadrante não era conhecido por mais de cinquenta pessoas em todo o universo. Você está recebendo o sinal do explorador S. Khyr da Alas Enterprise, módulo S3J-47. Eu exijo que você reporte essa comunicação imediatamente!

“Olha moço, eu não acho que vai ter como” a voz respondeu, sussurrando como se olhasse ao seu redor. “Não há maneira alguma para eu te alcançar.”

Não há maneira alguma. O diálogo estava estranho demais para Saggo entender. Mas havia algo naquele momento apto a compreensão? Flutuando num mar de nada, após tocar a Fronteira e desaparecer misteriosamente. Era hora de Saggo começar a fazer as perguntas certas. 

Você sabe onde estou? Ele perguntou, enquanto calafrios corriam por sua espinha invisível. 

“Claro!” A voz respondeu. “Você tá na aula do Professor Reynolds!”

O Professor Reynolds consegue me tirar daqui? Foi o questionamento feito por alguém que já havia desistido de atribuir qualquer lógica para a situação. 

“Ele não pode interferir, moço” a menina respondeu, com certa pena. “É um trabalho individual, nós temos que fazer essa atividade sozinhos.”

Saggo Khyr estava com medo de fazer a próxima pergunta, da qual ele inconscientemente sabia a resposta. Era uma sensação que cresceu com ele durante toda sua vida. Ele havia lido qualquer conspiração disponível a respeito, prontamente descartada pelas leis naturais da ciência e do senso comum.

O que o Professor Reynolds ensina?

“Simulação Quântica Avançada! Já ouviu falar?”

Estou familiarizado o suficiente com a primeira palavra, Saggo respondeu, sem esperança. Posso perguntar o que aconteceu com os outros?

“Eles foram deletados uns cinco minutos atrás, por aí” a voz respondeu. “Eu só precisava que algum chegasse no final, era o objetivo do projeto.”

E o que nós fomos? Perguntou, pela última vez. 

“Meu 25 em 30 pro trabalho final! Tenho que ir agora moço, a aula acabou.”

Saggo Khyr deixou de existir.





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