ALARME 147

Antes, o nascer do dia trazia consigo esperança. Agora, alarmes acompanham os primeiros raios de sol. Há muito não se ouve o cacarejar de galos, o piar de maritacas ou até o arrulhar de pombinhas. Os animais se tornaram raros, quietos. Não existem mais as frondosas árvores, com seus galhos repletos de ninhos. A floresta foi destruída como se uma grande mão invisível a agarrasse e cerrasse os punhos com a força necessária para a esfarelar até virar grão de areia.

Se antes Letícia se irritava com o cantar dos bem-te-vis que a faziam acordar, agora sente falta de qualquer som que não seja o Alarme. Incrível o quanto o mundo mudou em tão pouco tempo. Tudo bem que a história sempre foi cercada de mudanças e que tudo o que aconteceu, a Terceira Grande Guerra, os Fogos, a Grande Devastação, já estava sendo alardeado pelos cientistas há anos. Mas ela nunca acreditou que aconteceria com ela até que aconteceu. A perda de contato foi imediata. 

Sorri ao se lembrar das bobagens que sua mãe lhe mostrava na tela do celular. Ela ainda guarda o aparelho como recordação de tempos melhores, tanto do passado quanto do futuro. Sua falecida psicóloga diria que isso é sim uma pontada de esperança, mas Letícia não tem mais certeza de nada.

Por um instante, sente seu celular vibrar, mas logo volta à realidade: um estrondo estremece tudo a sua volta, abrindo uma rachadura preocupante no teto do abrigo subterrâneo. Vai acontecer de novo. Ela agarra e empurra a cama improvisada para dentro da mochila, e com gestos rápidos termina de colocar seus últimos pertences, deixando um único objeto de fora: sua IMBEL 9 M973. É, as pistolas ainda são bem populares naquele fim de mundo. Sua última ida aos Escombros da Fábrica de Itajubá lhe rendeu alguns pentes da Parabellum 9mm, o que garantia, em tese, tiros rápidos e certeiros. Durante um combate é preciso muito cuidado para não fazer os abrigos desmoronarem em cima de si, e por isso o recuo dado pelo tiro era de extrema importância. Na maioria das vezes tudo isso era travado na quase absoluta escuridão.

Dessa vez, uma forte luz invade sua área e Letícia não fica para ver se o teto acabou de desabar ou se alguém se infiltrou e estava usando uma lanterna para verificar se havia outro ser ocupando aquele espaço. Ela abre a pequena porta feita de madeira reciclada e a quebra ao sair, impedindo que outra pessoa consiga seguir seus rastros. Uma Terra sem apegos. Ela não olha para trás e segue tateando seu caminho de fuga, penetrando seu corpo pelos espaços apertados da trilha. Uma areia fina invade seus pulmões e é preciso segurar o espirro que pode revelar sua localização. Ela coloca a mão na parede, sente sua espessura, umidade, temperatura. Percorre os dedos pela superfície arenosa, procurando os locais mais firmes que indicam o caminho para um possível novo abrigo.

O peso em suas costas aumenta conforme passam as horas. As pernas de Letícia começam a tremer, sua língua move-se pelos lábios ressecados. Ela sente uma vontade urgente de molhar a boca, algo que está evitando há muito tempo. A água é cada vez mais preciosa e escassa. Ela para por um instante e imagina a sensação da água tocando sua pele. Já passou por essa situação diversas vezes. A sede é uma constante. Então, sua perna cede e ela se deixa cair. Sentada, começa a desamarrar as cordas do bolso de fora da mochila, sua vontade crescendo enquanto ela desfaz os nós e sua mente é inundada por imagens de água corrente, de uma torneira sendo aberta, de um copo translúcido cheio até a boca e Letícia não consegue formar nem uma lágrima apesar de sentir a garganta apertada e tudo é envolto em mais um estrondo do qual ela se protege formando uma concha com os braços.

Sua bacia metálica se desprende da mochila e rebate tilintando em estalidos que reverberam pelos corredores. Seu primeiro instinto ao se levantar é tocar na garrafa de água a qual percebe ainda estar consigo. Não há muito tempo para pensar e começa a correr no escuro seguindo a direção contrária dos sons. A bacia. Ela precisa da bacia. Ela precisa voltar pela bacia. Em um troca de pernas ela se vira e saca a pistola. Calma. Letícia, calma. Ela fecha os olhos apesar de não estar vendo quase nada em uma tentativa de estabelecer onde mirar. 

Um urro contínuo denota a presença de algo vivo e se movimentando na sua direção. Ela abre os olhos e atira. O rebote da arma é acompanhado de um corpo massivo que empurra seu ombro esquerdo, fazendo ela bater as costas na pedra fria. A bacia. Onde está a bacia. Letícia sabe que atingiu o alvo, mas continua a ouvir bufadas de uma respiração raivosa, sente o calor da presença de algo que quer matá-la. Ela começa a chutar o chão à procura da bacia, levantando um pó que volta a irritar seus pulmões. Seu pé esquerdo se depara com algo sólido e naquele ínfimo instante ela precisa decidir se atira ou não, com a possibilidade de acabar furando um de seus pertences mais valiosos. Letícia atira e ouve o urro aumentar de volume e aproveita para mirar exatamente de onde ele sai e atira mais uma vez, fazendo com que o grunhido vá diminuindo até virar uma respiração leve e então mais nada.

Tem vontade de chorar, mas logo é interrompida por um novo estrondo, que faz ela se agachar. Uma areia grossa começa a se infiltrar no ambiente, saindo de pequenas rachaduras no túnel. Ela se apressa em procurar a bacia de metal, vasculhando o chão com os pés, enquanto ainda mantém a arma em riste. Sente a areia escorrer pelo seu corpo, e volta a fechar os olhos, para protegê-los. Um timbre metálico anuncia o encontro de sua bota com a bacia, que ela coloca virada em cima de sua cabeça, usando-a como escudo. Sente que o teto está cada vez mais perto e se não sair dali vai ser logo soterrada. Caminha como dá, agachada, com as pernas dobradas. Suas coxas começam a doer cada vez mais, em um esforço que não acaba nunca. Sua musculatura está fervendo como o deserto que está logo acima de si.

O tempo ali é uma incógnita. O único marcador conhecido é o Alarme, que anuncia os primeiros raios de sol. Depois, é um grande vazio. No começo, o escuro constante gerava muita sonolência e ela caía facilmente no sono. Nunca mais pode dormir com a luz acesa. Nunca mais pode pedir para sua mãe deixar a luz acesa antes de sair do quarto. Nunca mais sua mãe… A escuridão era sua nova amiga. Em um ambiente escuro, todos são sombras.

Ela sente uma leve vibração, como se o celular voltasse a tocar e ela tivesse a oportunidade de atender e ouvir a voz de sua mãe. Podia ser qualquer coisa. “Coloca um casaquinho.” Mãe, aqui embaixo não sinto tanto frio. “Tá se alimentando bem?” Mãe, aqui a comida é muito escassa. “Leva o guarda-chuva quando sair.” Mãe, aqui não chove nunca. Aos 34 anos, Letícia sente cada vez mais a falta de sua mãe. Ela ouvia isso dela, que “mãe é para sempre” e quanto mais velho a gente fica, mais quer voltar para o útero.

Ninguém nos prepara para a morte. A nossa, a do outro. Letícia nunca realmente se acostumou com aquilo tudo, e considerava isso bom. Não tem que tornar a morte banal. Ela pode ocorrer todos os dias, mas ela não é banal. Ela percebe que o teto volta a se distanciar e suas pernas voltam a caminhar esticadas. Não é mais preciso usar a bacia como escudo, e ela voltar a pendurá-la na mochila. Aos poucos o ar se torna mais limpo e o chão se parece mais com um de uma caverna, em vez dos buracos de areia em que se abrigava. Seu pé chuta algo que rebate na parede e faz um leve barulho metálico. Com o tempo, ela aprendeu a distinguir as diferenças dos tons dos metais. É uma lanterna. 

Ela se agacha para pegar o objeto e sente que uma parte ainda está presa nas mãos de alguém. Percorre as mãos pelo chão e percebe que esse corpo também está soterrado, causa de morte um tanto comum por ali. Ela abre a tampa da lanterna e verifica que uma das pilhas está estourada. Procura em sua mochila pelas outras pilhas que recolheu pelo caminho. Testa a primeira, clica no botão e continua no escuro. Testa uma segunda, liga o botão e o ambiente é atingido por um fraco fecho de luz, o suficiente para a caverna tomar contornos. 

Letícia testa as outras pilhas, descarta as que não funcionam e volta a caminhar. Logo encontra uma passagem pequena o suficiente para conseguir passar e empurrar depois a sua mochila para dentro. Passeando com a lanterna pelo espaço ela observa a forma de um iglu. Há uma pedra logo ao lado, perfeita para fechar e disfarçar a entrada. Seu comportamento muda. Os músculos relaxam, ela joga a mochila para o lado, se ajeita em um cantinho. Passa um pano seco pela pele, para retirar o pó acumulado. Desamarra os cadarços e em um solavanco arranca as botas apertadas. Massageia os pés marcados, passando os dedos pela pele sensível.

De pés descalços, se levanta e faz um breve alongamento, caminha pelo seu pequeno espaço novo, sente a sola do pé se adaptando ao solo. Vai até a mochila e retorna com seu saco de dormir, alguns panos e frutinhas secas. Arranja os lenços na cama, e se deita, mordiscando um café da manhã que virou almoço e janta. Arranja a pistola ao seu lado, logo abaixo da lanterna, que segura com uma das mãos. A outra mão vai e volta no saquinho de guloseimas secas. Ela aponta a lanterna para o teto e observa as silhuetas das pedras e vai mirando outros lugares, conhecendo sua nova casa. Ao apontar a luz para o seu lado, observa riscos na parede, retos, quadrados. Faz um rápido cálculo mental.  Da última vez, marcou 37 Alarmes, antes, 42 Alarmes, 56 Alarmes, 12 Alarmes. Dão 147 alarmes. Pega uma pedra e risca um círculo separado, marcando ao lado o Alarme de hoje. Coloca a lanterna de volta, ao lado da arma e coloca o dedo em cima do botão, decidindo por não apertar. Permanece assim, deitada, terminando sua refeição e olhando para o teto. Sente seus olhos fechando, coloca a mão em cima da barriga protuberante e começa a cantarolar “nana neném que a Cuca vem pegar…”





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